O blogueiro Allan dos Santos está foragido, mas continua online. Com contas bloqueadas, redes sociais banidas e mandado de prisão em aberto, o aliado do presidente Jair Bolsonaro permanece ativo em seu canal do Telegram e dribla decisões judiciais para continuar faturando com discurso de ódio e notícias falsas. A estratégia de usar o aplicativo russo para se conectar com milhares de seguidores vem sendo usada por outros militantes digitais da extrema-direita. Sem controles rígidos, o Telegram se tornou abrigo de bolsonaristas “exilados” e já é apontado como o grande desafio da Justiça para as eleições de 2022.
O caminhoneiro Zé Trovão e o blogueiro Oswaldo Eustáquio também se mantiveram no Telegram enquanto eram procurados pela Polícia Federal. O serviço fez acender o alerta de autoridades que investigam a disseminação de fake news por ser considerado um terreno mais fértil que o WhatsApp para essa prática. Além de permitir a entrada de mais integrantes por grupo do que seu concorrente, o Telegram admite a atuação de robôs e não possui representação no Brasil, mas apenas em Dubai, nos Emirados Árabes. Com isso, é quase impossível submetê-lo às leis brasileiras.
A falta de um representante no País dificulta a cooperação com a Justiça e complica possíveis investigações. O Estadão apurou que grupos constituídos no aplicativo já preocupam o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pela dimensão que vêm ganhando. Ao rejeitar as ações para cassar a chapa Jair Bolsonaro-Hamilton Mourão, na semana passada, o TSE mandou duros recados ao Palácio do Planalto. O tribunal criou a tese de que disparos de mensagens em massa podem ser enquadrados como abuso de poder econômico e avisou que haverá punição para quem divulgar fake news na campanha de 2022.
O Telegram tem sido um refúgio para bolsonaristas e se tornou importante canal de comunicação do clã presidencial. Não apenas o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), idealizador do “gabinete do ódio” que atua no Planalto, como toda a família usa o serviço para falar com os apoiadores. No mês passado, o presidente ultrapassou a marca de 1 milhão de seguidores na plataforma.
Doações. Banido do Twitter, Facebook e Youtube, o blogueiro Allan dos Santos migrou para o Telegram e se comunica hoje com mais de 120 mil seguidores. Nas mensagens, ele pede doações de US$ 10 por meio de um site recém-lançado, registrado no exterior, fora do alcance de autoridades brasileiras.
A nova página que leva o nome de Santos está hospedada nos Estados Unidos e usa uma plataforma de pagamentos de Portugal. O método dificulta a ação da Justiça do Brasil, que já havia cortado fontes de financiamento do blogueiro em canais do Youtube e do Facebook.
A abertura do site se deu após o banimento do canal bolsonarista Terça Livre e da ordem de prisão expedida contra Santos. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), mandou prendê-lo em 5 de outubro. A página foi criada no dia 16. Os doadores não podem usar PIX ou cartão de débito. As transferências são feitas com cartão de crédito internacional e sofrem as consequências das crises política e econômica. Num mesmo dia, o doador pode pagar valores diferentes, dependendo da taxa de câmbio no momento.
As autoridades brasileiras tentam a cooperação internacional para que Santos, foragido nos Estados Unidos, seja enviado de volta ao País. Enquanto isso, ele mantém a carga contra instituições, vendendo falsas versões sobre as circunstâncias que lhe fizeram alvo da Justiça.
Nos últimos dias, o blogueiro intensificou a difusão dessas informações. Declarou que a CPI da Covid e os pedidos de impeachment contra Bolsonaro se devem a uma conspiração internacional do “Foro de São Paulo”. Sugeriu, ainda, sem qualquer evidência, que partidos de esquerda estão ligados ao narcotráfico, à pedofilia e ao infanticídio.
Transmissão. Logo após a ordem de prisão ter se tornado pública, Santos desabilitou os comentários de suas postagens. Seu canal no Telegram deixou de ser um fórum de discussão para se transformar em uma lista de transmissão. Ou, como definiu um investigador que apura fake news, “uma comunicação de um para muitos”.
Não é a primeira vez que o aliado de Bolsonaro dribla uma determinação judicial para manter suas atividades virtuais. Mesmo após a decisão do TSE que desmonetizou blogueiros classificados como disseminadores de notícias falsas, Santos continuou arrecadando.
Para contornar o bloqueio de pagamentos via Youtube, ele “linkou” uma página paralela nos vídeos do canal para convidar a audiência a doar por fora da plataforma. O site “terçalivrejuntos” era registrado no Brasil e foi retirado do ar.
Santos também tentou uma alternativa ao banimento das contas do Terça Livre nas redes sociais. Ele cedeu os direitos dos programas ao canal Artigo 220, do YouTube, para manter a presença virtual. A manobra para escapar das restrições impostas pelo ministro Alexandre de Moraes, no entanto, durou pouco porque a Justiça barrou o funcionamento do canal.
Processos. A desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo, disse que a estratégia de hospedar sites em servidores do exterior é um artifício comum quando se deseja fugir do ordenamento jurídico com conteúdos ilegais. Mesmo assim, o mecanismo não impede que os responsáveis respondam a processos no Brasil.
“Essa é a metodologia escolhida por aqueles que sabem que o conteúdo é ilegal. Mas os tribunais têm entendido, amparados no Código de Processo Penal e no Marco Civil da Internet, que o Brasil tem jurisdição para julgar condutas criminosas, ainda que o site esteja hospedado em outro país, se o conteúdo atinge resultado aqui”, constatou a magistrada, especialista em Direito Digital.
No caso de financiamento por serviços no exterior, porém, a Justiça brasileira não consegue atuar. Providências dependem de acordos internacionais e da legislação do País em questão.
“Quanto às doações (doador e donatário) estarem fora do Brasil, tecnicamente nenhum ato está dentro da nossa jurisdição. Por isso, em tese, não teria o Brasil jurisdição para julgar. Entretanto, com acordos internacionais se pode buscar apuração de eventual responsabilidade no país de origem. Tudo vai depender da legislação de cada país”, destacou Ivana David.
Procurado pelo Estadão, Santos não se manifestou. Nos canais em que se mantém ativo, o blogueiro afirma que vive na condição de “exilado político” porque é perseguido.