- Dida Sampaio/Estadão/
A cúpula da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, no Senado, tem consultado juristas para evitar que a denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro que pretendem levar ao Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, nos Países Baixos, não tenha o mesmo destino de outras que já foram apresentadas, mas até agora nem sequer foram analisadas. Nas conversas, senadores ouviram que a abertura de investigação contra o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, pode servir de precedente para uma ação contra o brasileiro, mas para isso é preciso que os crimes estejam muito bem fundamentados.
O TPI costuma aceitar apenas o julgamento de crimes internacionais considerados muito graves, incluindo genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade. Seu tratado, o Estatuto de Roma, foi adotado a partir de julho de 1998 por mais de cem países, incluindo o Brasil.
Na prática, o Tribunal de Haia atua quando as cortes nacionais não conseguem ou não desejam realizar processos criminais. Sendo assim, a formação desse foro internacional geralmente se justifica como um último recurso e só atua se o processo não estiver sendo julgado por outro Estado.
Desde 2019, a corte internacional recebeu três comunicações contra Bolsonaro. Uma delas já foi arquivada. Outra está em análise preliminar e uma terceira ainda não teve resposta.
Em entrevista ao Estadão, Sylvia Steiner, única juíza brasileira que já atuou na corte (2003-2016), disse acreditar que há “prova abundante” contra o chefe do Executivo. “As denúncias que foram encaminhadas ao TPI, foram três ou quatro, tratavam de um problema de má gestão da covid. Falava-se de incompetência, de um problema administrativo, de pessoas incompetentes que estavam gerindo mal uma crise sem precedentes”, disse. ” O que ficou demonstrado foi que o problema não era de má gestão. Porque má gestão e ignorância, infelizmente, não são crimes”, completou ela. A ex-juíza assina o relatório de juristas coordenado por Miguel Reale Jr. que aponta sete crimes cometidos por Bolsonaro na pandemia, incluindo contra a humanidade.
“O desafio é fazer o tribunal olhar para um País que tem instituições democráticas, ainda que estejam sob ataque, como no atual momento”, disse a advogada Eloísa Machado, professora da Fundação Getulio Vargas.
Na avaliação dos juristas consultados, porém, duas decisões recentes da corte internacional podem dar força à denúncia enviada pela CPI: as autorizações para abertura de investigação por crimes contra a humanidade cometidos pelo presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, em 15 de setembro, e sobre a atuação de tropas americanas e britânicas no Afeganistão, por crimes de guerra e contra a humanidade, no ano passado.
Essas investigações poderiam fortalecer apurações sobre crimes cometidos em “países em processo de erosão democrática”, como o Brasil. Também no encontro com a CPI, a jurista Deisy Ventura, da Universidade de São Paulo (USP), disse que a investigação sobre o presidente das Filipinas “é um recado importante a governantes populistas extremistas que estão causando tanto dano à humanidade”.
Duterte assumiu a presidência do país asiático em 2016 e promoveu uma violenta política de combate e caça a traficantes e usuários de drogas. A polícia matou milhares de pessoas, que, segundo a corporação, eram traficantes de drogas e resistiram à prisão. Grupos de direitos humanos afirmam que este número é muito maior e classificam a política como extermínio sistemático de usuário de drogas nas comunidades mais pobres. Durante a campanha à presidência em 2019, Duterte prometeu matar até 100 mil traficantes e viciados em drogas. “Eu sou o esquadrão da morte? Sim. Isso é verdade”, disse.
As Filipinas foram um país-membro do tratado que criou o Tribunal de Haia até março de 2018, quando oficializaram sua saída. A retirada, porém, só começou a valer um ano depois. Por isso, a apuração contra Duterte na corte internacional foi aceita, mas vai focar em crimes cometidos entre 1º de novembro de 2011 e 16 de março de 2019.
“Há uma base razoável para o procurador (de Haia) para proceder a investigação, no sentido de que o crime contra a humanidade de assassinato parece ter sido cometido, e esse (s) caso (s) potencial (is) decorrente (s) de tal investigação parece estar dentro da jurisdição do Tribunal”, apontou o documento que autoriza a apuração do TPI.
Na avaliação de Machado, a chegada do advogado britânico Karim Kahn à chefia da Procuradoria do TPI, este ano, também pode favorecer uma eventual acusação dos senadores da CPI contra Bolsonaro. Parecer de juristas à CPI aponta que o presidente cometeu crime contra humanidade contra os indígenas pela falta de uma política de saúde para protegê-los da covid. “Temos a informação de que há uma vontade, uma diretriz do TPI, em enfrentar temas relacionados a povos originários na América Latina”, afirmou a advogada.
As acusações são comunicadas em Haia por meio da Procuradoria do órgão, que funciona como uma espécie de Ministério Público e tem o poder de abrir investigações e apresentar denúncias ao órgão. Os juristas que falaram aos senadores foram unânimes em apontar que os processos em Haia são longos e levam anos para terminarem. Uma denúncia enviada por senadores, no entanto, adquiriria “um grau diferente” e teria um “enorme impacto” internacional e nacionalmente. Segundo eles, seria um “divisor de águas”.
Além do TPI, o relatório final da CPI deverá ser enviado também à Procuradoria-Geral da República e a unidades do Ministério Público Federal para apuração de investigados sem prerrogativa de foro. Apesar de terem poder para investigar e decretar quebras de sigilo, CPIs não podem punir, explicou o advogado criminalista Sérgio Rosenthal ao Estadão. “A efetiva punição de eventuais culpados cabe exclusivamente ao Poder Judiciário, após o devido processo”, afirmou.